Nos séculos XVI e XVII, o Brasil recebeu franceses e holandeses, nações europeias de influência protestante que chegaram em um solo dominado por portugueses da contrarreforma — polo europeu de origem católica que tinha como foco deter e extinguir o protestantismo no mundo. Mesmo em meio a um cenário de luta e intolerância religiosa, contudo, houve homens que permaneceram firmes em sua fé e encontraram no Brasil um solo fértil para disseminar a fé cristã reformada e acolher a todos por meio da graça divina.
No dia 10 de março de 1577, numa pequena ilha do Rio de Janeiro, no interior da Baía de Guanabara, conhecida atualmente como Ilha de Villegaignon, aconteceu o primeiro culto protestante na história do Brasil e das Américas, organizado por um grupo de pastores e missionários franceses. Desde 2005, a data é considerada efeméride no calendário nacional e comemorado anualmente pelos cristãos brasileiros.
O culto foi conduzido pelos pastores ordenados Pierre Richier e Guillaume Chartier e a palavra embasada em Salmos 27.4: “Ao Senhor Eterno peço somente uma coisa: que Ele me deixe viver na sua casa todos os dias da minha vida, para sentir a sua bondade e pedir a sua orientação”.
O primeiro culto protestante marcou um momento histórico ímpar e ainda pouco conhecido pelos brasileiros, em geral, porque depois de ter sido colonizado por países de cultura católica-romana e do forte trabalho de catequese, principalmente dos jesuítas, eis que 57 anos depois da descoberta do Brasil, doze huguenotes — protestantes franceses —, enviados por João Calvino na colonização francesa na Baía da Guanabara (França Antártida, 1555–1560), oficiam um culto a Deus, segundo a liturgia cristã reformada.
“Mais do que um contraponto religioso, o evento culminou na confissão protestante conhecida como Confesso fluminense, o primeiro documento teológico das Américas, em 8 de fevereiro de 1558 e no primeiro martírio de crentes protestantes no Brasil. Portanto, é um marco da história da incipiente e frágil liberdade religiosa no país, que ainda teria um longo caminho até que Estado e Igreja passassem a ser separadas no Brasil”, afirma o chanceler do Instituto Presbiteriano Mackenzie, reverendo Robinson Grangeiro Monteiro.
A expedição missionária começou anos antes, em 1555, quando um grupo de franceses atracou na Baía de Guanabara, liderado por Nicolas Durand de Villegaignon e com o apoio do almirante Gaspard de Coligny (1519–1572), aspirante a correligionário dos franceses (huguenotes). Contudo, com o passar do tempo, nem tudo ocorreu conforme esperado.
Villegaignon e os missionários calvinistas
De imediato, Villegaignon demonstrou simpatia com a fé cristã protestante e, inclusive, chegou a escrever cartas endereçadas ao reformador João Calvino que vivia em Genebra, na Suíça, para pedir que missionários viessem até a colônia brasileira em que ele atuava para contribuir com a propagação do Evangelho.
A expedição que chegou em 1557 com um grupo pequeno de huguenotes estava sob a liderança dos pastores Pierre Richier e Guillaume Chartier. Dentre os membros, estava Jean de Léry, autor da obra Histórias de uma viagem à terra do Brasil (1578). Esse grupo, então, foi o responsável por celebrar o primeiro culto protestante em terras brasileiras. Apesar de inaugurarem a primeira celebração cristã reformada, não demorou muito para que Villegaignon e os missionários tivessem alguns conflitos por questões teológicas.
O pastor Chartier retornou para a França e os demais colonos foram retirados à força do local em que vivam. Entretanto, o navio em que a maioria estava sofreu alguns problemas e, por esse motivo, cinco deles pediram permissão para permanecer no Brasil — Jean de Bourdel, Matthieu Verneuil, Pierre Bourdon, André Lafon e Jacques le Balleur — que, juntos, escreveram a Confissão de fé de Guanabara (1558), conhecida também como Confissão fluminense.
A tese da Confissão de fé de Guanabara (1558) abordou questões como a doutrina da Trindade, os sacramentos, o livre-arbítrio, a autoridade dos ministros, a vida amorosa e a intercessão. Contrariado pela proatividade e liberdade de pensamento dos missionários, Villegaignon ordenou a execução de Jean, Matthieu e Jacques sob alegação de heresia e poupou André, pois ele era o único alfaiate da colônia. Le Balleur conseguiu fugir para o litoral, mas depois foi preso em Salvador e assim permaneceu até 1567, quando foi enforcado pelos portugueses.
“No período colonial o estado exerceu um rígido controle sobre a área eclesiástica. Com isso a igreja teve dificuldade em realizar adequadamente o trabalho evangelístico e pastoral. O catolicismo popular era culturalmente forte, mas débil nos planos espiritual e ético. Apesar das suas debilidades, a igreja foi um importante fator na construção da unidade e da identidade nacional” (MATOS in Vox Faifae, v. 3. n. 1, 2011, p. 3).
A Baía de Guanabara: local de cultura e memória
Em setembro de 2020, o chanceler do IPM, reverendo Robinson Grangeiro, ao lado do presidente do Conselho Deliberativo do IPM, reverendo Cid Caldas, visitou a Baía de Guanabara e a Escola Naval do Rio de Janeiro. Durante o dia, eles refletiram sobre o assunto e a importância de manter viva a memória do protestantismo brasileiro.
O chanceler do IPM, reverendo Robinson Grangeiro, e o presidente do Conselho Deliberativo do IPM, reverendo Cid Caldas, em visita à Escola Naval do Rio de Janeiro
NTAI/Mackenzie
“Todo entusiasta da história tem uma emoção especial quando está em um lugar marcado por um fato histórico ou diante de um cenário ou de fontes antes só conhecidas nos livros. Estar ali com o reverendo Cid Caldas, um apaixonado pela história, assim como eu, sendo recebidos pelo comando da Escola Naval da Marinha do Brasil, no monumento que assinala o local exato daquele culto e tendo como cenário a belíssima Baía da Guanabara, foi um grande privilégio, que emocionou e relembrou lições importantes sobre o nosso país”, diz o chanceler.
Segundo o reverendo Robinson Grangeiro, o maior aprendizado dessa experiência foi relembrar a coragem daqueles mártires missionários, que deram suas vidas para não renegar a fé cristã reformada e para que na atualidade aquele gesto, propugnando a liberdade de crer e de adorar, conforme o melhor entendimento da consciência de cada um, se tornasse um legado precioso que as gerações atuais precisam conservar. “Eu me senti um pequeno herdeiro com um tesouro de inestimável valor, que me foi entregue por gigantes da fé”, completa.
A importância de manter-se firme na fé
A fé cristã, em uma de suas metáforas mais conhecidas na Bíblia, é coluna e baluarte em que o povo de Deus e a Igreja de Jesus Cristo receberam a incumbência de nutrir nos corações, educar as gerações e proclamar a todos. Uma coluna é um marco que traz lembranças e lições para não ser esquecida. Uma espécie de memorial intangível representado em algo concreto, que nos inspira a fidelidade aos que erigiram o primeiro culto protestante no Brasil.
A Escritura Sagrada afirma que não devemos remover os marcos antigos. Eles estruturam a nossa fé e a nossa vida. Por outro lado, um baluarte é uma fortificação de onde se defende as posições em uma guerra e de onde se ataca os inimigos. “Hoje, vivemos uma guerra cultural feroz por mentes e corações. Um processo avançado de secularização, que tenta remover Deus da vida pública para restringi-lo à ambiência privada, como se toda a civilização ocidental não tivesse nos fundamentos judaico-cristãos a sua origem”, diz o chanceler.
Portanto, como os huguenotes que promoveram o primeiro culto de fé cristã reformada em solo brasileiro, o cristão deve permanecer firme em seus valores de vida. “É preciso marcar posição com verdade e amor, porque as nossas armas não são carnais, e sim poderosas em Deus, para destruir fortalezas, anulando em nós sofismas e toda altivez que se levante contra o conhecimento de Deus. Levar cativo todo pensamento à obediência de Cristo, o único Rei e Senhor de tudo e de todos, essa defesa torna-se proclamação e vivência da fé, além de refúgio para a alma cansada”, finaliza o chanceler, reverendo Robinson Grangeiro.