O primeiro trimestre do governo Lula foi marcado por algumas invasões de terra no âmbito rural colocando em questão o direito de propriedade exercido nos limites constitucionais. Muito mais que a proteção de um direito fundamental, preservar os bens que, de acordo com o Texto Maior, cumprem a chamada função social, é atitude simbólica com efeitos que ultrapassam, em grande medida, os interesses dos sujeitos envolvidos. A mensagem passada para o conjunto da sociedade em relação à postura governamental e ao correto funcionamento institucional é de importância fulcral para o desenvolvimento do país.
A proteção dada pela Constituição ao direito de propriedade, exercido em cumprimento à respectiva função social (artigo 5º, incisos XXII e XXIII), é demonstrada pelo status que lhe é conferido. Reconhecer a fundamentalidade de um direito equivale a afirmar que ele é necessário para a existência digna do ser humano. No caso sob análise, como visto em alguns terrenos no sul da Bahia, por exemplo, a Carta Magna tem sido vulnerada sem que haja postura mais firme por parte das autoridades para fazer valer o que consta no documento de maior valor político e jurídico do país. Considerando-se a hipótese, conforme relatos da mídia, de que haja o chamado ‘abril vermelho’, período marcado por grande número de invasões de terra, vários riscos são colocados para a sociedade brasileira enfrentar nos próximos tempos.
Primeiramente, é importante notar que, onde o Estado não se faz presente, outras formas de poder surgem. Portanto, há a possibilidade de que os detentores de terra, ao se verem desprotegidos, optem por organizar conjuntos de pessoas para a defesa do território, configurando corpos de milícia ao arrepio do sistema jurídico, evidentemente. É o que ocorre, de modo lamentável, quando o país não apresenta estrutura suficientemente eficaz na proteção de direitos dos cidadãos: o advento da barbárie. É necessário, assim, que haja sinalização firme do governo e das autoridades competentes no sentido de desincentivar as invasões. Eventual desapropriação, que pode ocorrer legalmente caso a mencionada função social da propriedade não seja cumprida, deve obedecer determinado procedimento em um Estado de Direito que pretende fazer jus a tal qualificação.
Em termos institucionais, a situação é ainda mais complexa do ponto de vista econômico, pois o descumprimento de direitos básicos, como a propriedade, passa uma mensagem muito negativa para investidores nacionais e estrangeiros. A insegurança jurídica provocada pelas referidas invasões sem a correspondente reação das autoridades faz com que o ambiente jurídico nacional seja caracterizado como hostil ao capital. A possibilidade de que o regramento seja descumprido sem que haja a inerente sanção jurídica provoca o natural temor daquele agente cujos recursos são necessários para a produção de riquezas, geração de empregos e pagamento de tributos (fundamentais para a prestação dos tantos serviços previstos na Constituição da República). Sem este dinheiro, a disfuncionalidade estatal brasileira tende a ficar ainda mais evidente, pois a falta de crescimento econômico potencialmente conduzirá ao acirramento da dissensão social e, consequentemente, a governabilidade pode sofrer abalos diante do aumento da pressão da coletividade brasileira. Como sabido, o desenvolvimento da economia pode mascarar algumas deficiências da estrutura da democracia, mas o contrário é igualmente verdadeiro: a crise econômica pode realçar cisões comunitárias, abrindo um perigoso espaço para o surgimento de figuras políticas oportunistas que, com algum carisma e retórica, podem manipular os sentimentos sombrios da população para lugares obscuros, como a história demonstra fartamente no Brasil e em outras partes do planeta.
Passado o período inicial do governo federal, considerando-se o fim do primeiro trimestre, as cartas já estão na mesa. Algumas dificuldades em termos políticos já ficaram evidentes e o mandatário terá que enfrentá-las ao longo do mandato. Independentemente disto, há sinalizações importantes que ainda não foram dadas, como o posicionamento firme acerca do respeito ao direito de propriedade. Hesitar na defesa do dito direito fundamental tem potencial explosivo nos âmbitos econômico e social, pois o sofrimento humano dos despossuídos não deve ser resolvido pela produção de dor daqueles que produzem honestamente. A falta de vontade política na resolução deste problema essencial na sociedade brasileira já causou muitos dissabores ao longo da história nacional. Nesse momento de atribulação social, o país não pode correr o risco de sofrer o aprofundamento da ruptura de laços comunitários pela omissão das autoridades. Quando a anomia aparece, o comportamento civilizado corre risco.
Autor: Elton Duarte Batalha – Professor de Direito da Universidade Presbiteriana Mackenzie. Advogado. Doutor em Direito pela USP.