Por ocasião da proximidade do dia 08 de março – Dia Internacional da Mulher – reconhecido pela ONU em 1975, Ricardo Oriá, em recente manifestação no Jornal Estadão sob o título A invisibilidade das mulheres na História, pontua que “apesar de História ser um vocábulo feminino, sua escrita e narrativa, expressas na produção historiográfica, reservam pouco espaço para a atuação das mulheres”.
Ele aponta o fato de que “essa invisibilidade na História deve-se também ao fato de que a História das mulheres não foi por elas escrita”, citando Simone de Beauvoir, na sua obra clássica O Segundo Sexo, segundo a qual a razão dessa invisibilidade começa pelo fato de que “toda a História das mulheres foi escrita pelos homens”.
Ele também concorda com a historiadora francesa Michelle Perrot, que inclui as mulheres entre os “excluídos da história”, argumentando que “a narrativa tradicional reservou pouco espaço para as mulheres, na medida em que privilegiou a cena pública, o mundo da política e da guerra”.
Oriá faz questão de lembrar das 67 mulheres que viajaram como enfermeiras para os campos de batalha na Itália, auxiliando no tratamento de doentes e feridos em Nápoles, como parte da participação da Força Expedicionária Brasileira (FEB) na 2ª Guerra Mundial (1939-1945).
Além disso, faz questão de mencionar as “heroínas da pátria” registradas no livro de aço do Panteão da Pátria e da Liberdade Tancredo Neves, em Brasília, e também não se esquece do movimento pelo sufrágio feminino desde 1910, que acabou sendo exitoso pela inclusão das mulheres no Código Eleitoral de 1932.
Essa invisibilidade da mulher na história é fato inconteste, restando-lhe muitas vezes o papel de pivô de guerras, como Helena de Troia, ou de papéis subalternos no famigerado ditado de que “por trás de um grande homem sempre se encontra uma grande mulher”. Nem é preciso assumir como luta ideológica todas as implicações disso, assim como é forçoso reconhecer que já houve avanço na presença feminina nos últimos tempos, conquistado por elas mesmas em várias esferas públicas, antes restritas aos homens.
Portanto, há motivos para celebrar e ainda outros para lamentar e fazer do choro uma caminhada avante, pois, certamente ainda há muito espaço não ocupado pelas mulheres, que convivem em pleno século XXI com discriminações, tanto na ambiência familiar, como no mundo do trabalho.
A coisificação e a violação da sacralidade do corpo feminino, inclusive em suas emoções machucadas e autonomia personalíssima desconsiderada, quase sempre têm desembocado na abjeta violência doméstica e no feminicídio. A diferença absurda de salários em relação aos homens, com competências e funções semelhantes complementam os sinais de que esta igualdade de direitos ainda precisa ser reafirmada como conquista diária.
Consciente da ousadia da proposta desta reflexão, gostaria de pensar sobre um fundamento mais profundo que repousa em Deus, o qual deveria ser levado em conta nesta luta das mulheres pela dignidade que lhes é intrínseca, e que deve ser encampada por todos.
Diante de uma histórica e aguerrida contestação do papel das chamadas religiões monoteístas, acusadas de manter visões misóginas promovidas por um modelo patriarcal, um olhar mais atento para a posição judaico-cristã emanada das escrituras sagradas do antigo e do novo testamento certamente apontará para uma compreensão distinta da visão negativa sobre como supostamente pensam os cristãos acerca do lugar da mulher na sociedade.
Se forem analisados sem anacronismos históricos, vieses etnocêntricos e categorias ideológicas costumeiras, é possível encontrar lugar até mesmo para uma percepção de antecipação desse lugar honroso da mulher na sociedade, especialmente na postura de Jesus Cristo.
Para tanto, é preciso identificar três momentos nessa história redentiva. O momento da Criação, ou “o como era no início de tudo”. O episódio da Queda, ou “o como tudo se tornou por causa da rebelião humana”. E a narrativa da Redenção, ou “o como já começou a ser e será na restauração de todas as coisas”.
Neste sentido, é preciso ligar a Criação – “o como era no início de tudo” – à Redenção – “o como já começou a ser e será na restauração de todas as coisas” pela redenção em Cristo. Este salto, apenas mencionando o episódio da Queda e o status quo a partir dela um pouco de lado, justifica-se porque “o como tudo se tornou” é simples de perceber em termos de disfuncionalidade do propósito original do Criador especialmente na questão da mulher.
Na ordem da criação, há uma indicação clara de um lugar de honra para a mulher, tanto aos olhos de Deus, como diante dos homens. Homem e mulher são criados individualmente completos e adultos, a partir do fato em comum de ambos terem sido formados à imagem de Deus, mesmo que a narrativa de Gênesis possa parecer dar margem, pela sequência da criação – homem primeiro, mulher depois – a algum tipo de primado masculino.
Na verdade, um olhar mais atento demonstra que, ao longo da história da redenção trazida pelas Escrituras, homem e mulher são singulares em suas características distintas, porque – embora individualmente plenos como imagem de Deus – são complementares e mutuamente contribuintes, de modo distinto e único, para os relacionamentos mais estruturantes da família e na sociedade, por meio de seus múltiplos papéis e funções.
A contestada submissão da mulher ao homem é consequência da rebelião de ambos contra o Criador, conhecida na teologia como queda ou pecado original, mas, particularmente, eu não acredito que era originalmente a condição relacional entre ambos, especialmente se for caricaturada como superioridade e inferioridade, com opressão e exploração supostamente legitimadas pela religião.
Complementaridade com singularidade certamente é a ideia por trás da expressão “não é bom que o homem esteja só” e a ideia de missão em comum é a melhor forma de compreender o auxílio ou a ajuda, que Deus intenta ao criar ambos, um para o outro.
A palavra hebraica ezer, usada para “auxiliar” remete à ideia de força, frequentemente diante da necessidade de alguém de ser ajudado, como é o caso do salmista no Salmo 118.7, no qual é o próprio Deus chamado de “adjutor” e elencado entre aqueles que “me ajudam”.
O “não é bom que o homem esteja só” constatado pelo próprio Deus, quando só o homem havia sido criado, se torna o “e viu Deus que isso era muito bom”, depois da criação da mulher, porque mutuamente e em divina sinergia seriam mais capazes de cumprir os mandatos de Deus para a criação.
Os mandatos de criar a cultura e a sociedade humanas e usufruir da plena comunhão com Deus na terra não foram dados apenas a Adão, mas também a Eva, especialmente porque tinham “no crescer, multiplicar e encher a terra” a via natural para que a humanidade subsistisse.
Da ordem da queda, tudo isso é subvertido – assim como todas as coisas e relações no universo. Por isso, algumas narrativas nas escrituras, bem como as atitudes reprováveis, inclusive de homens escolhidos por Deus, não são legitimadas por Deus, porque a lente para julgá-las não é apenas à luz de sua época, mas também como condição transitória para a plenitude da vontade de Deus para estas relações de homem e mulher.
Esta plenitude é a condição inaugurada por Jesus e a ser consumada por ele, segundo a história da redenção, na qual em Cristo a mulher é reposta em seu devido lugar, mesmo que inserida em circunstâncias históricas e culturais ainda limitadas de um reino de justiça em desenvolvimento e ainda não consumado.
Portanto, legitimar a discriminação contra a mulher, porque está descrita nas páginas da bíblia, sem levar em conta que é consequência da rebelião da humanidade contra Deus é tão danoso como não perceber que é justamente o oposto a isso que Jesus fez, quando pregou um evangelho gracioso, libertador e transformador das realidades perversas do pecado, seja na interioridade de cada ser humano, seja nas estruturas e relações sociais contaminadas pelo pecado manifesto em ideologias desumanizantes.
Jesus é o Deus vivo que nasce do ventre de uma mulher quase menina, de origem humilde, em um recanto longe dos centros de poder econômico, social e religioso da época. Como qualquer criança dependente do leite materno, do cuidado de Maria e do aprendizado humano com o qual aquela mulher escolhida contribuiu para a plenitude de sua humanidade, Jesus valorizou a mulher, mesmo em uma sociedade nitidamente opressora contra ela.
Ele mesmo chama várias discípulas importantes entre aqueles que o seguiam, sendo ajudado por elas em muitas tarefas práticas do seu ministério. Os seus nomes são mencionados nas narrativas dos evangelhos, proporcionalmente mais vezes do que em todo o antigo testamento. São várias Marias, além de Joana, Isabel, além de outras não nomeadas, que ao lado de Rebeca, Débora, Ester, Sara, entre outras da história judaica, mostram que não eram desprezíveis aos olhos de Deus, nem invisíveis e inúteis na história da redenção. Jesus nasce, vive, morre e ressuscita também rodeado de mulheres com quem convive, abençoa e por quem é seguido e servido.
Na ressurreição, tiveram o privilégio de ver o Senhor Jesus, antes dos próprios apóstolos, e se tornaram testemunhas do Senhor, enquanto os homens, assustados e confusos com a morte do Mestre, preferiam se esconder no cenáculo.
Na história posterior da igreja tiveram papel fundamental, a ponto da primeira igreja cristã na Europa surgir na casa de uma mulher comerciante chamada Lídia. Nesses vinte séculos de influência cultural cristã no Ocidente se tornaram educadoras, missionárias e líderes cristãs em papel destacado no centro dos principais acontecimentos históricos.
Atualmente, fazem jus a serem tidas como iguais em direitos civis, como cidadãos plenos. Daí que, mulher ou homem, todos têm direito de ser, de bem suceder academicamente e profissionalmente, sem qualquer doutrinação ideológica discriminatória de que são inferiores.
Diferentemente do que visões machistas propagam, o lugar certo da mulher não é nem na pia, nem no fogão, se forem compreendidos como lugar subalterno. É o lugar que Deus tem para elas, quando dota cada uma delas de competências e habilidades específicas e, em sua providência, muitas vezes oculta e silenciosa, indica oportunidades para cada uma delas exercer missões na vida para o bem de todos e para realização pessoal do potencial de cada um.
Portanto, não há fundamento justificável em diferenças físicas e psicológicas entre homens e mulheres que legitime moralmente qualquer ideologia de diminuição da mulher, que provoque desonra ao propósito divino ao criá-la como mulher.
Se hoje dirigem empresas, países e organizações em todo o mundo, demonstrando resiliência, capacidade de superação e contribuindo significativamente para o desenvolvimento social é porque Deus as criou com tais capacidades e elas têm laboriosamente desenvolvido ao longo da história.
Se cresce a proporção de mulheres cientistas e gestoras, do setor público e privado, como consequência de que já são a maioria nas escolas e nas universidades, com escolarização média crescente e até maior do que a dos homens, é porque o destaque de desempenho que as situa entre as melhores, independentemente de gênero, demonstra a vontade divina de honrá-las como imagem dele no mundo.
Como proposta ousada, não vejo qualquer incongruência em afirmar que é preciso muita fé para ser mulher, tanto na luta a ser travada, como nas razões mais existenciais que apontam para aquele que a fez como coroa da criação.
Reverendo Robinson Grangeiro Monteiro
Chanceler do Mackenzie