Os índices de violência contra a mulher têm aumentado a cada ano. De acordo com levantamento feito pelo portal G1, os casos de feminicídio cresceram 5% entre 2021 e 2022, com 1,4 mil mulheres mortas nesse período - o que corresponde a um assassinato de mulher a cada seis horas. Além disso, a Ouvidoria Nacional dos Direitos Humanos registrou, no primeiro semestre do ano passado, 31.398 denúncias e 169.676 violações envolvendo a violência doméstica contra as mulheres.
Os dados alarmantes foram a motivação para Iara Mola, doutoranda do Programa de Pós-Graduação em Letras (PPGL) da Universidade Presbiteriana Mackenzie (UPM), dedicar-se à pesquisa que analisa o discurso presente nos relatos de vítimas de violência doméstica. Na semana em que se celebra o Dia Internacional da Mulher, o Na Lupa! conversou com a pesquisadora sobre o tema.
“Estamos vivendo tempos em que os índices de violência doméstica no Brasil seguem cada vez mais alarmantes. Ao invés de nos surpreendermos com alguma diminuição ou algum resultado que fosse positivo, pelo contrário, nós sempre recebemos notificações todos os dias de algum caso de feminicídio, como também nos assustamos com a própria perversidade com a qual, cada vez mais, a prática dessa violência vai sendo revestida”, afirma Iara Mola.
A pesquisa O Discurso da violência contra mulher na perspectiva das vítimas: um estudo semiótico-discursivo apresenta dois diferenciais. O primeiro deles é o tema ser analisado sob uma perspectiva linguística. Iara Mola utiliza em sua tese os conceitos da análise do discurso para compreender padrões e regularidades nos relatos das mulheres que foram vítimas desse tipo de crime. Isso acontece pois, ao contrário do que se pode imaginar, a violência contra a mulher não se trata apenas de violência física ou psicológica, mas também acontece no âmbito das palavras, ou melhor, do discurso.
“Por meio da análise do discurso, poderia ser evidenciado como o discurso da violência doméstica poderia conter uma série de regularidades enunciativo-discursivas que faz com que seja um discurso comum a esses atores sociais”, apontou a pesquisadora, que salienta que o foco do estudo são os textos produzidos por essas vítimas. “Eu analiso como esse texto é construído, desde os valores que estão sendo colocados em jogo, até a ideologia que realmente os atravessa e, a partir daí, a pesquisa tem evidenciado uma série de regularidades”, argumenta.
Além disso, o foco do estudo é sempre o relato da vítima. Iara selecionou 24 relatos de mulheres que foram agredidas por seus companheiros, publicados em uma página do Instagram, chamada Sobrevivendo ao Abuso, criada durante o distanciamento social imposto pela pandemia de covid-19. Ao contrário da maioria das pesquisas sobre o tema, essa tese não se preocupa com relatos de vítimas em boletins de ocorrência, em processos, em reportagens ou cartilhas de prevenção.
“Eu analiso a experiência dessas mulheres, do ponto de vista delas, de uma maneira mais integral, a partir dos relatos compartilhados na página de mulheres que tinham passado por essa violência e que acabavam tentando, por meio das próprias denúncias, evitar que outras mulheres passassem pela mesma vivência”, apresenta.
Regularidades
A partir das análises dos discursos desses relatos, Iara percebeu que havia muitos pontos em comum entre o que as mulheres explicitam. A partir disso, ela viu a possibilidade da existência de um ciclo de violência discursiva sofrida por essas mulheres. O conceito é inspirado nas pesquisas da norte-americana, Eleanor Walker, que elaborou o ciclo da violência doméstica: momento de tensão entre o casal, acaba eclodindo em um ato de violência física praticado pelo parceiro, é seguido por um período de “lua de mel”, em que o agressor se mostra arrependido, promete mudança de comportamento e se mostra extremamente carinhoso, até um momento em que surge uma nova tensão e volta ao começo do ciclo.
“No mesmo dia, pode acontecer as três etapas do ciclo. Então, a exemplo das ideias de Walker, eu parto da possibilidade que também existe um ciclo discursivo, a ser depreendido desse conjunto de discursos das vítimas de violência doméstica”, aponta a mackenzista.
No caso do ciclo pensado por Iara Mola passa pelo conceito de percurso da manipulação, existente na análise semiótica-discursiva e que aparenta acontecer em momentos diferentes dentro do ciclo já definido por Walker. “A pesquisa tem revelado, que aquilo que corresponde à fase de aumento da tensão, que é a primeira parte do ciclo, discursivamente, a gente tem um período de manipulação desse então companheiro”, explica a doutoranda.
Em um primeiro momento, durante o aumento da tensão, o agressor tenta produzir determinado comportamento na vítima por meio da provocação. “Ele provoca para estimular nela uma resposta, de fazer aquilo que ele quer, justamente para que ele não desenvolva a respeito dela uma apreciação negativa”, aponta Iara Mola. Em seguida, entrando no momento do ato de violência, a manipulação passa a ser por meio da intimidação. “Existe uma contrapartida negativa” diz Iara, indicando que seria um ato violento - físico ou psicológico. Por fim, no momento da “lua de mel”, a manipulação acontece pela tentação. “Nesse momento, o agressor se torna mais carinhoso, diz que não vai voltar a acontecer, e manipula a vítima de maneira a preservar a própria imagem dele de ‘bonzinho’”, conclui a doutoranda.
Outras duas regularidades têm sido levantadas nos relatos das vítimas: primeiro, que elas tendem a confiar no potencial do agressor ser uma pessoa muito melhor do que ele efetivamente é; e segundo que as mulheres sempre indicam que o começo do relacionamento é quase perfeito, como se fosse “um conto de fadas”. “Isso nos leva a questionar também esses produtos de uma construção social, cultural, sobre os contos de fadas e com a moral dessa cultura voltada para mulheres, feitas a partir de uma leitura naturalmente enviesada e moralizante desses contos”, explica ela.
Contribuição da linguística
De acordo com Iara Mola, a pesquisa possui um caráter educativo, pois os relatos publicados nas redes sociais servem tanto como uma forma das vítimas contarem o que sofreram, mas também possui um caráter de alerta para outras mulheres. “A priori, é um desabafo, mas também tem esse caráter de denúncia que serve para o social, um apelo às leitoras, no sentido de que elas tomem cuidado, que evitem passar pelo mesmo tipo de experiência”, afirma.
Além disso, a pesquisadora acredita que a área da linguística pode dar excelentes contribuições no combate à violência contra a mulher, principalmente porque a sociedade tornou-se mais atenta com preconceitos e formas diversas de violência. “Tudo converge para que seja um tema de interesse da nossa área porque, finalmente, nos demos conta de que a violência doméstica, assim como outros tipos de violência, extrapola aquilo que é do universo do tangível e está também naquilo que é discursivo”.
Ela espera que sua pesquisa possa fornecer contribuição expressiva nesse aspecto, já que os ciclos discursivos apontados por ela poderiam ajudar possíveis vítimas a interromperem situações de futuros abusos. “Talvez possa servir como um material de esclarecimento e de espelhamento para mulheres que, tomando contato com esses discursos de outras companheiras, pudessem identificar em que fase desse ciclo se encontram e se antecipem em relação àquilo que esperariam por elas numa fase seguinte”, conclui.
A tese de Iara Mola é orientada pela professora do PPGL, Diana Barros, e foi aprovada na qualificação.
Na Lupa!
Com o objetivo de lançar luz à pesquisa científica desenvolvida na Universidade Presbiteriana Mackenzie, o Na Lupa! é um novo quadro de divulgação científica mackenzista. Com tradição em inovar e empreender, a pesquisa é uma das preocupações da UPM, o que coloca a instituição como uma referência no fazer científico. Toda investigação, apuração e verificação desenvolvida na universidade ganha agora um espaço para divulgação.