16.04.2015 Chancelaria
O conhecimento "de contato" é sempre um risco... Aquela situação em que temos uma ideia genérica ou difusa sobre um termo ou conceito e assumimos que já o compreendemos totalmente. A ideia da confessionalidade corre sempre o risco de se tornar um termo "de contato": repetido, presumido, mas, às vezes não compreendido. Como o Mackenzie é instituição confessional, é muito importante ter clareza quanto ao que significa essa confessionalidade, ter uma visão clara e distinta, daquele tipo que, como disse o jurista americano Oliver Wendell Holmes Jr., possui a "simplicidade-pós-complexidade".
Usando óculos: a metáfora
Talvez um bom lugar para começar a firmar o conceito seja na metáfora dos óculos. Quem inventou os óculos? Ainda que haja já na antiguidade relatos do uso de "lentes" para auxiliar na visão, mesmo que lentes corretivas sejam mencionadas em textos árabes traduzidos no século XI, e a despeito da possibilidade de que os óculos sejam invenções antigas da China ou Índia, o fato é que o primeiro registro histórico dos óculos, como conhecemos hoje, surge na Itália do século XIII.
Imagine agora, o primeiro “fabricante” de óculos, Alessandro della Spina (de Pisa), tentando apresentar sua nova descoberta. O primeiro grande desafio que ele enfrentaria seria convencer as pessoas da necessidade ou dos benefícios do uso de óculos. Isso incluiria convencer as pessoas quanto as suas limitações de visão, e no caso dos "já convencidos", argumentar que os óculos, de fato, oferecem uma solução para os olhos cansados, míopes ou hipermetropes (os bifocais parecem só ter surgido bem mais tarde, com Benjamin Franklin). Chamemos esta fase de "momento de convencimento".
É certo, entretanto, que nosso Alessandro não poderia se contentar com essa primeira fase. Uma vez que as pessoas estivessem convencidas da necessidade dos óculos e de suas potencialidades, seria preciso demonstrar para essas pessoas como é que esses óculos funcionam, como são feitos, ou seja, uma fase de "instrução, descrição, definição".
O momento especial, entretanto, seria uma terceira fase, na qual Alessandro concentraria seu foco no cumprimento do propósito dos óculos! Esse é momento no qual os óculos deixam de ser apenas "objeto de estudo" (fase 2) ou "proposta de resolução", para serem usados na prática, implementados, "vestidos", por assim dizer. Esse instante maravilhoso quando uma pessoa com vistas cansadas coloca os óculos e é surpreendida pela clareza de visão e o momento que comprova todo convencimento prévio e a instrução que trouxeram a pessoa até aqui.
A cosmovisão cristã como óculos
Mas estamos falando de confessionalidade, não é? Por que essa coisa dos óculos? A inspiração vem de João Calvino:
Exatamente como se dá com pessoas idosas, ou enfermas dos olhos, e tantos quantos sofram de visão embaçada, se puseres diante delas um vistoso volume, ainda que reconheçam ser algo escrito, contudo mal poderão ajuntar duas palavras; ajudadas, porém, pela interposição de lentes, começarão a ler de forma distinta. Assim a Escritura, coletando-nos na mente conhecimento de Deus que de outra sorte seria confuso, dissipada a escuridão, nos mostra em diáfana clareza o Deus verdadeiro. (João Calvino, Institutas. I.VI.I)
A proposta de que as Escrituras sejam usadas como lentes que oferecem foco para o que se pode apreender da revelação geral é perfeitamente análoga ao que significa ter a cosmovisão cristã como lente para trazer a foco tudo o mais que se pode conhecer sobre o mundo criado, incluindo a criatura humana! Significa usar a fé, aquilo que professamos crer, ou, confessamos, como óculos, como matriz interpretativa, quando olhamos para outros objetos. Isso deveria ser óbvio e claro, pois a própria Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (de 1996), ao reconhecer a existência de instituições de ensino confessionais, oferece a dica: "que atendem a orientação confessional e ideologia especificas". Mas nem sempre é assim.
Estrutura básica da cosmovisão cristã
Ainda que a cosmovisão ensinada nas Escrituras seja passível de alta complexidade e profundidade nas aplicações e implicações, ela pode ser apresentada de forma estruturalmente simples: são duas tríades conceituais, como que se fossem o emolduramento, os aros, que seguram as lentes dos óculos no lugar:
1. O primeiro destes conjuntos conceituais e a visão da estrutura da realidade sob o prisma Criação-Queda-Redenção. Essa visão rejeita as dicotomias tradicionais na filosofia secular, como sujeito/ objeto, matéria/forma, universais/particulares, natureza/graça, natureza/liberdade, tese/antítese=síntese, etc. – dicotomias que acabam por abstrair o homem e seus objetos do saber do real contexto de significado que essas coisas possuem. Ela afirma que o mundo, o ser humano e toda experiência humana fazem sentido somente no contexto dessa estrutura tríplice.
Na física, por exemplo, a categoria da "criação" estabelece base para acreditar na previsibilidade das relações físicas, a compreensão da "queda" permite compreender anomalias e permite admitir um certo grau de imprevisibilidade, enquanto a categoria da "redenção" justifica a busca por um conhecimento que possibilite a intervenção positiva.
Uma pedagoga guiada por uma cosmovisão cristã, como exemplo em outra área do saber, ao invés de interpretar seus alunos dialeticamente e sua tarefa como se fosse parte de uma luta por libertação/emancipação, vai olhar para cada criança-aluno como dotada de dignidade e potencialidades intrínsecas (criada à imagem de Deus!), mas reconhecerá também que existe um princípio de desordem, uma poeira de morte, uma anormalidade que afeta a todas as pessoas (a categoria da Queda) e as faz carentes de transformação, de redenção.
2. A segunda tríade conceitual é a visão dessa realidade em relação ao Criador e, especialmente, Redentor. Ela representa o prisma conceitual que lança luz e traz foco, mostrando que a realidade deste mundo só pode ser vista como ela realmente é quando entendida na sua relação com o referencial divino. Isso não significa a rejeição da possibilidade de conhecimento por parte dos incrédulos, nem mesmo aqueles que ostensivamente rejeitam a Deus - eles podem saber, e sabem, muitas coisas, mas não conseguem relacionar os "significados" dos seus saberes de forma transcendente e muitas vezes distorcem esse conhecimento para evitar reconhecer a Deus (Romanos 1: 16-32). Mas quer Jesus seja o objeto de grato reconhecimento, por parte de seus eleitos, ou aquele que os rejeitantes querem suprimir de sua visão ou relegar aos cantos seguros da "religiosidade privada" e da experiência subjetiva, Jesus não deixa, por um só momento, sua posição como Senhor do pacto, o Sumo Sacerdote, o Profeta de Deus e o Rei dos reis.
É da compreensão de que Jesus se relaciona com sua criação como profeta, sacerdote e rei, que surge a tríade de aspectos de seu senhorio que compõe e colore nossa visão de mundo: a sua Presença, seu Controle e sua Autoridade. Isso significa também, que aqueles que estão sendo transformados em nação de profetas, sacerdócio santo, corregentes com Cristo, tem por missão manifestar a presença do Senhor do pacto, expressar o controle que o Senhor tem sobre a realidade e proclamar a autoridade de Cristo.
Olhar para o mundo pela ótica da tríade Criação-Queda-Redenção e a base para realismo sem desespero, esperança sem romantismo e dignidade sem arrogância. Usar ainda a lente que vê, compreende e promove a presença, o controle e a autoridade do Senhor Jesus sobre cada canto da realidade e trazer a vida intelectual "cativa a mente de Cristo". Esses são os dois eixos ao redor dos quais a cosmovisão cristã é construída.
Desenvolvimento da confessionalidade no Mackenzie
É aqui que a história dos óculos volta a ajudar. O desenvolvimento da influência confessional (influência da cosmovisão cristã) no Mackenzie envolveu algumas fases distintas, ainda que não estanques. Sempre houve um aspecto de confessionalidade simbólica e devocional no Mackenzie, mas foi no final da década de 1990 que alguns passos foram tornados para que essa identidade confessional fosse mais explicita, culminando com a inclusão do termo "Presbiteriano" no nome do Instituto e da Universidade Mackenzie.
Esse momento marcou o início de um processo mais intencional de fortalecimento da identidade confessional do Mackenzie, em um movimento inverso ao que a história registra como ocorrido em algumas grandes instituições europeias e norte americanas que começaram com forte identidade confessional e a abandonaram com o passar dos séculos.
E nos últimos quinze anos, entretanto, que são percebidos dois momentos, análogos às duas primeiras fases da "implantação" dos óculos de Alessandro della Spina: houve um momento inicial no qual os esforços relacionados à confessionalidade no Mackenzie eram primariamente de natureza apologética, um trabalho de convencimento de que confessionalidade era desejável e necessária; este primeiro momento deu lugar paulatinamente a uma segunda fase na qual a cosmovisão cristã, a natureza da confessionalidade do Mackenzie, era explorada, explicada e ensinada. Nestes dois primeiros momentos, a "deficiência de visão" das perspectivas secularistas era realçada e a cosmovisão crista era esboçada. Destarte, a confessionalidade consistia primariamente em um objeto de argumentação, descrição e análise.
Uma nova fase: usando os óculos
Assim como no caso de Alessandro, a maravilha e as potencialidades da visão cristã do mundo, da atitude de usar as lentes da cosmovisão cristã para trazer foco ao resto dos saberes, só é realizada plenamente quando os "óculos" passam a ser vestidos . Esse é o desafio da terceira fase da confessionalidade no Mackenzie: a cosmovisão cristã aplicada de forma transversal (toca em toda a gama de áreas do saber), permeante (permeia até a raiz das coisas) e transparente (não opaca).
Isso não significa a cessação dos desafios apologéticos no enfrentamento das falsas "lógicas" e da altivez que se levantam contra o conhecimento de Deus (2 Coríntios 10: 3-5a). Também não prescinde do trabalho de explicação e comunicação da estrutura da cosmovisão cristã (1 Pedro 3.15), mas demanda algo mais. Exige que essa cosmovisão cumpra seu propósito ao dar cor e trazer foco sobre as mais diversas áreas do conhecimento humano, especialmente aqueles pontos em cada área de trabalho intelectual e acadêmico que são mais profundamente sensíveis a pressupostos de natureza religiosa e metafísica (aquilo que em inglês chamamos de "worldview-sensitive issues" ) - Esse é o trabalho que cumpre a ordem de tomar "cativo todo pensamento à obediência de Cristo" (2 Coríntios 10: 5b).
O aspecto de transversalidade da confessionalidade significa não somente que ela perpassa todos os campos do saber, mas significa também que muitas vezes seu papel não será especificamente como objeto de consideração, mas como lente mediante a qual se olha para os outros objetos. Além deste aspecto ser decorrência da própria natureza da visão cristã, ele também oferece uma vantagem extraordinária na unificação do saber sem o reducionismo característico das abstrações de natureza ideológica-secular.
A permeância (que na física representa o inverso da relutância magnética!) diz respeito à capacidade que a cosmovisão cristã possui de penetrar e permear nos recônditos mais radicais da vida do intelecto e das reflexões científicas. Isso deve ser característica marcante da confessionalidade do Mackenzie e representa também aquilo que o mundo chama de "diferencial competitivo", pois permite maior profundidade na compreensão das coisas.
Já a transparência tem dois sentidos, um deles de cunho ético e o outro epistemológico: a confessionalidade deve ser transparente porque ela é franca, ela não precisa ser escondida ou envolta em subterfúgios como outras ideologias espúrias que carecem das trevas para vicejar- esse é um aspecto ético; mas ela também é transparente no sentido epistemológico, pois não traz opacidade ao conhecimento e ao olhar lançado sobre as coisas, antes, enriquece a visão, melhora os contrastes e enriquece os detalhes.
E quais são os presentes?
Quais são, finalmente, os "presentes" que nossa confessionalidade nos permite oferecer àqueles que o Mackenzie se propõe a servir em nome de Cristo? O conhecimento da graça redentiva de Deus em Cristo, e claro, e a dádiva maior, oferecida na proclamação do evangelho e do senhorio de Cristo. Mas essa proclamação continua e segue em seus aspectos indiretos, como o testemunho de que o senhorio de Cristo se estende sobre cada aspecto da vida. Soma-se então a proclamação, o desafio à incredulidade e finalmente, a oferta de uma visão redentiva do conhecimento humano e do protagonismo, nesse mundo que jaz em trevas mas que anseia ardentemente por redenção (Romanos 8). Essa visão tem poder de persuasão? Recentemente essa pergunta foi respondida por este autor da seguinte maneira:
Talvez o argumento mais persuasivo, cativante e profundo que podemos oferecer a esse mundo - tão carente de verdade, estrutura e beleza -, talvez a nossa versão mais profunda da Différance, seja o testemunho, em verbo e ação, da vastidão de horizontes de significados, realidades e valores que se desvelam quando procuramos partir da ótica da autorevelação ao de Deus em Cristo e em sua Palavra...
Rev. Dr. Davi Charles Gomes
Chanceler da Universidade Presbiteriana Mackenzie