Está em julgamento, pela 3ª Turma da Câmara Superior do Conselho Administrativo de Recursos Fiscais (CARF), um caso que retrata as dificuldades para o empreendedorismo no Brasil. A discussão refere-se à natureza do calçado Crocs, muito conhecido pela população. A resposta a tal questão pode redundar no pagamento de relevante valor aos cofres públicos pela pessoa jurídica responsável pelo produto mencionado, dada a determinação contida na Resolução nº 14, de 4 de março de 2010, pela Câmara de Comércio Exterior (CAMEX), aplicando direito antidumping (de US$13,85 por par) ao rol de produtos importados da China classificados sob a Nomenclatura Comum do Mercosul (NCM) 6402 a 6405. Desse rol, exclui-se a imposição da medida aos calçados domésticos (pantufas), conforme estipulado no artigo 1º, parágrafo único, V, da referida Resolução.
A situação descrita, que consta no processo nº 10314.721061/2015-19, propicia a reflexão sobre diversos aspectos que relacionam o Direito e a Economia. Independentemente do caminho a ser tomado pelo órgão decisor, a questão é anterior ao posicionamento a ser adotado em julgamento e atine à insegurança jurídica causada pelo regramento nacional em diversas áreas (nesse caso, no campo tributário, mas são inúmeras as situações relativas aos campos trabalhista, ambiental, criminal, etc). A consideração dos efeitos econômicos de questões aplicadas no campo jurídico, seja no momento de elaboração, fiscalização ou cumprimento de normas, é fenômeno crescente em vários países, não sendo diferente no Brasil.
No caso sob análise, de valor milionário, a qualificação jurídica do produto pode levar ao pagamento ou não de valor referente aos juros de mora, à multa e aos direitos antidumping. Evidentemente, se houver reconhecimento de tal dívida, a pessoa jurídica deverá pagá-la, em respeito ao Estado de Direito vigente no país, mas a reflexão é sobre a origem da situação: que tipo de legislação o Brasil produz a ponto de criar a prosaica dúvida a respeito da natureza jurídica de um Crocs (se sandália de borracha – NCM 6402 - ou se calçado impermeável - NCM 6401)? Não seria um sintoma de algo muito maior, presente em outros campos (do Direito e da sociedade), como o excesso de formalidade? O excesso de normatização na seara jurídica atende ao escopo fundamental da pacificação social ou serve como obstáculo para tal intento, com efeitos deletérios sobre o desenvolvimento econômico nacional?
A insegurança jurídica não é um mero detalhe, pois a litigância provocada pelo regramento representa custos elevados a todos os interessados no desenvolvimento do país, com especial destaque para a sociedade, pois deve custear o funcionamento da máquina pública para o julgamento dos conflitos, e para o empreendedor, que deve destinar recursos para custear o processo e provisionar valores para a eventual improcedência de seu pedido na demanda. O montante utilizado em tal situação poderia ser melhor alocado em atividade produtiva, o que representa custo de oportunidade (mesmo em caso de vitória no litígio). A observação do referido panorama desestimula tanto o agente que já está engajado no processo produtivo, como o potencial investidor, que desiste de colocar seus recursos em um país cujo ambiente institucional parece-lhe hostil. Com menor volume de investimento em decorrência da mencionada reflexão, há uma perda generalizada para o país, pois há menos empregos, menor estímulo ao mercado consumidor, redução no pagamento de tributos e, consequentemente, menor disponibilidade de recursos para o ente estatal prestar os diversos serviços públicos à comunidade, conforme dever que lhe é atribuído constitucionalmente.
Portanto, a questão que dá título ao texto, mais que um chiste de inspiração evidente nas consagradas palavras de Shakespeare, propõe a reflexão sobre a situação historicamente percebida no Brasil que consiste na imposição de dificuldade ao espírito empreendedor, seja um luminar como o Barão de Mauá (conforme relatado na clássica obra de Jorge Caldeira), seja um pequeno investidor. Enquanto o país não resolver suas macroquestões (e decidir transformar-se em um território que atrai capital produtivo, com ambiente institucional adequado e menores custos de transação), continuaremos a observar se o calçado Crocs é uma pantufa ou não. Ser ou não ser? Eis a questão.
Autor: Elton Duarte Batalha – Professor de Direito da Universidade Presbiteriana Mackenzie. Advogado. Doutor em Direito pela USP.