Mackenzie 140 anos - Educando com qualidade a partir da visão cristã de mundo

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Carta de Princípios 2010

20.02.2010 Chancelaria

Rev. Dr. Augustus Nicodemus Lopes


A convicção mais básica e fundamental do Cristianismo é que tudo na vida humana tem uma natureza religiosa. O mundo em que vivemos e a própria existência humana são dependentes de um poder superior e transcendente, que é o Deus revelado nas Escrituras e manifestado em Jesus Cristo. O corolário desta convicção é que nenhuma área da vida humana, nenhuma parte do mundo que a cerca, existe e funciona de maneira independente ou autônoma de Deus, mas sempre coram Deo (diante de Deus). 

O ser humano, todavia, desde a sua Criação, usando da sua capacidade de escolha, resolveu emancipar-se desta dependência e seguir seu caminho como um ser autônomo, perdendo desta forma o referencial divino que dá coesão e sentido à realidade que o cerca. A redenção oferecida por Deus em Jesus, e que nos é revelada nas Escrituras Sagradas, alcança mais que a salvação de indivíduos – ela tem como alvo a redenção da vida como um todo, inclusive da maneira como as pessoas enxergam a realidade e percebem o mundo ao seu redor.

Foram essas convicções que sempre impulsionaram os cristãos, em maior ou menor medida, a criarem, no decorrer da História, escolas e universidades e a promoverem educação da melhor qualidade, calcada numa visão cristã de mundo. Os cristãos sempre defenderam que “o mais alto objetivo da educação deve ser, então, ajudar os seres humanos no desenvolvimento do conhecimento, habilidades e atitudes que contribuam para que eles possam glorificar e agradar melhor a Deus”.1

Foi assim que o Mackenzie começou há 140 anos.
 

I. Mackenzie e Confessionalidade – Aspectos Históricos

Desde as suas origens mais remotas, nos idos de 1870, a instituição educacional que viria a se tornar conhecida como “MACKENZIE” teve a sua identidade marcada por nítidos traços de fé cristã reformada, pois nascera e se desenvolvera como desdobramento da ação missionária empreendida pela Igreja Presbiteriana [do Norte] dos Estados Unidos em terras brasileiras. De fato, essa era a clara e luminosa visão dos seus fundadores – o casal de missionários George e Mary Chamberlain – quando criaram a Escola Americana segundo referenciais pedagógicos inovadores para aquela época e elegeram as Sagradas Escrituras como fundamento para a ação educacional cotidiana.

Com o passar dos anos, os laços do Mackenzie com a Igreja Presbiteriana dos Estados Unidos foram se tornando mais tênues, embora a ênfase ao caráter religioso da instituição tenha permanecido. Em fins de 1885, assumindo a direção da Escola Americana o médico e educador Horace M. Lane, foram criados os cursos de nível médio e superior, que vieram a constituir, em pouco tempo, o famoso “Mackenzie College”. É preciso reconhecer que, a partir da administração de Lane, os vínculos do Mackenzie com as entidades eclesiásticas foram se reduzindo, especialmente no que tange às interações com a Igreja Presbiteriana do Brasil. Permaneceu, contudo, a orientação centrada na formação ética do educando, que deveria assimilar a influência comunicada mais pelo exemplo que pelo discurso, em busca da construção de um “caráter genuinamente cristão”.

Essas atitudes cautelosas quanto à confessionalidade podem ser entendidas à luz das circunstâncias da época. No final do Império, o catolicismo era a religião oficial e as igrejas protestantes lutavam por legitimidade e aceitação. Com a Proclamação da República, todavia, surgiu um estado laico e uma situação legal de plena liberdade religiosa, o que favorecia a confessionalidade das escolas protestantes.

Em 1961 ocorreu a doação do patrimônio e a transferência da direção do Mackenzie à Igreja Presbiteriana do Brasil (IPB). Esse processo de “nacionalização” sofreu sérios revezes nos anos seguintes, decorrentes de contestações levantadas por segmentos contrariados com a vinculação do Mackenzie à Igreja Presbiteriana do Brasil. Esses segmentos não desconheciam que foram os missionários presbiterianos que deram origem a esta instituição educacional. Nem desconheciam que foram esses missionários que haviam captado recursos materiais e humanos para o seu desenvolvimento, desde a segunda metade do século XIX. Todavia, algumas lideranças da Universidade, da Diretoria Executiva do instituto, como do próprio Conselho Deliberativo, se insurgiram abertamente contra a IPB, levando o governo do Estado de São Paulo a decretar a desapropriação do Mackenzie, tirando-o de sob a direção da IPB (1966).

Em novembro de 1973, a Igreja Presbiteriana do Brasil teve assegurado pelos tribunais, em caráter definitivo, o direito de nomear e aprovar os dirigentes do Conselho, da Diretoria e da Universidade Mackenzie. Com isso, consolidou-se no aspecto legal o esforço no sentido de dar à escola um caráter nitidamente confessional. Assim, deu-se início ao  processo fatual da nossa confessionalidade. Um passo importante nesse processo foi a inclusão do adjetivo presbiteriano nos nomes institucionais: Instituto Presbiteriano Mackenzie (1996) e Universidade Presbiteriana Mackenzie (1998).

Mais que simples atualização de rótulo, a mudança sinalizou, a partir de um terreno parcialmente aplanado duramente ao longo dos anos, o advento de novos tempos e novos desafios. A confessionalidade do Mackenzie tomou caráter mais explícito, que passou a tocar desde os Projetos Pedagógicos até a criação de disciplinas transversais como “Ética e Cidadania”. Intensificaram-se as atuações da Chancelaria e da Capelania, realizaram-se eventos confessionais de grande porte no âmbito da Universidade – enfim, um grande número de ações que deram materialidade aos enunciados da Missão, da Visão e dos Princípios e Valores que se encontram estampados em todos os documentos institucionais e veículos midiáticos – desde os boletos bancários até o Canal de TV Digital – desta grandiosa Universidade Presbiteriana Mackenzie.
 

II. Princípios que Orientaram o Mackenzie em sua Jornada

Os princípios que em maior ou menor medida têm orientado a visão educacional cristã do Mackenzie até o presente podem ser resumidos como se segue. 
 

Educar faz parte do mandato divino ao ser humano

Um dos princípios mais destacados é que o mundo e o universo foram criados por Deus de acordo com leis e princípios que regulam sua existência e funcionamento. Dessa forma, eles são passíveis de análise, pesquisa e entendimento. Deus deu ao ser humano a tarefa de dominar a criação (Gênesis 1), o que implica conhecê-la e valer-se dela para seu bem e o dos outros. O estudo amplo da realidade e a transmissão desse conhecimento entre gerações é o que chamamos de educação. Como tal, é parte da missão dada por Deus ao ser humano por ocasião de sua criação. O Mackenzie sempre viu a educação como uma missão a ser cumprida e não como um negócio lucrativo.
 

Educar é uma atividade regida por crenças e princípios

Outro princípio é o da não neutralidade na educação. Tem sido comum acreditar-se – mesmo em círculos cristãos – que a educação, a pesquisa, o trabalho científico, mesmo limitados por alguns princípios éticos e morais, são atividades mais ou menos neutras e autônomas. Todavia, tem se tornado cada vez mais aceita a constatação de que o trabalho científico, a pesquisa e a educação são processos interpretativos e elucidativos da realidade, que se valem de pressuposições e valores anteriormente aceitos para realizar sua análise e conceituação. Nas palavras do estadista e educador Abraham Kuyper.

Toda ciência num certo grau parte da fé, e ao contrário, a fé que não leva à ciência é equivocada ou superstição, mas não é fé real, genuína. Toda ciência pressupõe fé em si, em nossa autoconsciência; pressupõe fé no trabalho acurado de nossos sentidos; pressupõe fé na correção das leis do pensamento; pressupõe fé em algo universal escondido atrás dos fenômenos especiais...2

Assim, a dicotomia popular entre fé e razão é inadequada, pois cientistas, professores, educadores e gestores educacionais são pessoas, e como tais, levam para suas atividades a sua fé, crenças, ou a falta delas, o que certamente influenciará seu trabalho. Assim, mesmo que não o admitam, cientistas, professores e instituições de ensino são portadores de valores morais e espirituais que influenciam o processo educativo, mesmo naquelas instituições ditas públicas e neutras.
 

Educar exige uma visão coerente do todo

Um princípio igualmente importante é o da necessidade de coesão para a educação. No labor acadêmico, cientistas, pesquisadores e professores se deparam inevitavelmente com a necessidade de relacionar objetos, estruturas e aspectos da realidade, para que os mesmos façam sentido. O individualismo e a fragmentação do conhecimento têm sido denunciados como nocivos à educação. Nas palavras de Edgar Morin, “A educação deveria romper com isso [a fragmentação da realidade] mostrando as correlações entre os saberes, a complexidade da vida e dos problemas que hoje existem”.3 O conceito de totalidade, dentro da qual as especificidades fazem sentido, faz parte da empreitada acadêmica e é resultante das crenças, religiosas ou não, do pesquisador, do cientista e do professor. Na educação cristã, essa visão do todo é resultante da coesão e coerência da criação realizada por um Deus inteligente, sábio e bom.
 

A Bíblia como fonte de conhecimento

Por último, mas não menos importante, há o princípio de que as Escrituras do Antigo e do Novo Testamento são inspiradas por Deus e são a sua revelação final para a humanidade. Deus se revela como Criador por intermédio da sua imagem em nós, como também por meio das coisas criadas. O mundo que nos cerca é um testemunho vivo da divindade, poder e sabedoria de Deus, muito mais do que o resultado de milhões de anos de evolução cega. Entretanto, é por meio de sua revelação especial nas Escrituras que Deus nos faz saber acerca de si próprio, de nós mesmos (pois é nosso Criador), do mundo que nos cerca, dos seus planos a nosso respeito.

Muito embora a Bíblia não seja um livro de ciências, e nem tenha linguagem científica, nos fornece fenomenologicamente informações corretas sobre nós, nosso mundo e sobre nosso relacionamento com o Criador, e como tal, não pode ser ignorada no processo educacional. A educação que se fundamenta nas Escrituras oferece-nos um escopo do que Deus deseja de nós e, nos fala de qual o propósito de nossa existência em todas as suas esferas.4  

Assim, à luz dos princípios acima, buscamos no Mackenzie fugir dos modelos utilitaristas e imediatistas de educação e oferecer, até onde seja possível, uma educação integral, que alcance todas as dimensões do ser humano e que leve Deus em conta. Nessa empreitada, o Mackenzie considera seriamente a liberdade de consciência de cada aluno, cooperador e professor, a autonomia universitária e a busca incessante pela qualidade do seu ensino, pesquisa e extensão.
 

III. Desafios Pela Frente

Ao completar 140 anos oferecendo uma educação de qualidade com referenciais cristãos, o Mackenzie está grato a Deus pelas vitórias alcançadas, mas também plenamente consciente dos desafios que historicamente sempre cercaram as grandes instituições confessionais. De um lado, o perigo de secularizar-se e perder a visão confessional, em busca de aceitação e credibilidade da sociedade e do governo. De outro, o perigo de isolar-se da cultura que o cerca e deixar de relacionar-se criticamente com ela a partir das Escrituras.

Como o surgimento do nazismo e stalinismo já têm tornado muitíssimo claro, tendências culturais precisam ser criticadas. Não se pode permitir que sejam normativas. E isso exige que o cristianismo baseie-se em algo que transcenda particularidades culturais – especificamente, a auto-revelação de Deus.5

Deixar de interagir com nosso mundo seria uma atitude fundamentalista e faria o Mackenzie perder a sua relevância para a academia e a sociedade.

Queira Deus nos livrar de ambos os perigos e nos conceder a graça de combinar sempre qualidade e confessionalidade.
 

Rev. Dr. Augustus Nicodemus Lopes
Chanceler da Universidade Presbiteriana Mackenzie


 
Nossos agradecimentos aos que contribuíram significativamente para o texto desta Carta: 
Dr. Alderi Souza de Matos
Dr. Marcel Mendes
Dr. Hermisten Maia Pereira da Costa.

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1 HUGHES, John A. Por que Educação Cristã e não Doutrinação Secular? In: MACARTHUR, John (Org.). Pense Biblicamente!: recuperando a visão cristã do mundo. São Paulo: Hagnos, 2005, p. 376.

2 KUYPER, Abraham. Calvinismo. São Paulo: Cultura Cristã, 2002, p. 137-138.

3 Entrevista dada em dezembro de 2003, acessada em novembro de 2007 em http://novaescola.abril.com.br/index.htm?ed/168_dez03/html/falamestre.

4 “A cosmovisão cristã tem coisas importantes a dizer sobre a totalidade da vida humana”. NASH, Ronald H. Questões Últimas da Vida. São Paulo: Cultura Cristã, 2008, p. 19.

5 MCGRATH, Alister E. Paixão pela Verdade: a coerência intelectual do Evangelicalismo. São Paulo: Shedd Publicações, 2007, p. 60.