Surge no debate público, mais uma vez, a discussão acerca da natureza jurídica do trabalho prestado com o uso de plataformas digitais como Uber, iFood e Rappi, dada a possibilidade de instauração de incidente de resolução de demandas repetitivas (IRDR) pelo Tribunal Superior do Trabalho (TST), com base em dois casos levados a julgamento no âmbito da Subseção I Especializada em Dissídios Individuais (SDI-I). Caso tal procedimento processual seja, de fato, realizado, as implicações jurídicas e econômicas são substancialmente relevantes para toda a sociedade, atingindo trabalhadores, empreendedores, os consumidores e os cofres estatais.
De forma sintética, o IRDR é procedimento previsto no artigo 976 do Código de Processo Civil, aplicável no âmbito do trabalhista (artigo 8º da Instrução Normativa nº 39, de 2016, do TST), podendo ser utilizado se presentes dois pressupostos: efetiva repetição de processos que contenham controvérsia sobre a mesma questão unicamente de direito e risco de ofensa à isonomia e à segurança jurídica. Evidentemente, a questão de prestação de serviços com o uso de plataformas digitais cumpre os dois elementos apontados, dado o grande número de demandas desse tipo no Judiciário brasileiro, relacionadas à existência ou não de vínculo empregatício, e a grande insegurança jurídica atinente ao assunto, com efeito deletério à economia e, por conseguinte, à sociedade. Note-se que, caso o IRDR seja instaurado, há a possibilidade de que sejam ouvidas “pessoas, órgãos e entidades com interesse na controvérsia” (artigo 983/CPC), situação que permite ao julgador ter acesso a uma maior carga informativa, podendo decidir com base em dados mais completos, incluídos elementos do campo extrajurídico (como aspectos econômicos). Além disso, a decisão terá caráter vinculante, uma vez que a tese jurídica será aplicada aos processos que versem sobre “idêntica questão”, atuais e futuros (artigo 985/CPC).
Como ressaltado, as consequências do posicionamento do TST irão impactar a sociedade amplamente, pois há milhões de pessoas que serão atingidas de forma direta ou indireta pela decisão. Se houver o reconhecimento de vínculo empregatício, as plataformas digitais, por óbvio, terão os custos exponencialmente ampliados, dada a necessidade de pagamento de direitos trabalhistas. Sob o prisma jurídico, a questão posta é se, efetivamente, há subordinação em tal forma de prestação de serviços por parte do trabalhador em relação à entidade que faz a intermediação, colocando tal pessoa em contato com o consumidor do serviço. Há imposição, pela plataforma, de alguma maneira, quanto ao modo pelo qual o trabalho é realizado (determinação de frequência, horário, possibilidade de punição), não existe tal estipulação ou, ainda, tais critérios não são mais aplicáveis para o enquadramento deste tipo de atividade, dada sua natureza disruptiva? Essa é a questão central a ser enfrentada pelo Judiciário.
Na hipótese de afirmação de existência de vínculo subordinativo, é possível que o modelo de negócios das plataformas digitais seja inviabilizado, dado o aumento das despesas com verbas trabalhistas em relação aos prestadores de serviços. Em última análise, em termos econômicos, poderá ser produzida consequência contrária à esperada pelo ente estatal, uma vez que, na busca de conferir maior proteção ao trabalhador, ensejará potencial perda de fonte de renda pelos prestadores de serviços, pois as plataformas poderão retirar-se do país (dada a inviabilidade econômica da atividade), e, caso permaneçam atuantes, precisarão reduzir drasticamente o número de trabalhadores (buscando diminuir custos). Os consumidores, evidentemente, também sofrerão os efeitos decorrentes do menor número de trabalhadores e natural aumento do preço do serviço (para manter a viabilidade do negócio) e o Estado arrecadará menos tributos, com o arrefecimento da atividade no setor. É demonstração cabal da importância das instituições (no caso, o enquadramento jurídico de uma atividade humana e o respectivo aumento dos custos de transação) para o desenvolvimento da economia.
Certamente, o ambiente de insegurança jurídica é bastante nocivo para o desenvolvimento econômico, pois desincentiva investimentos, com impacto na geração de renda, consumo e tributos para a sociedade. Portanto, a situação do trabalho com o uso de plataformas digitais deve ser tratada em definitivo para que o Direito cumpra seu escopo de pacificação da comunidade. Importante ressaltar, porém, que a decisão acarretará efeitos que extrapolam de forma evidente os limites jurídicos, sendo marcantes os efeitos econômicos e sociais da decisão que, potencialmente, o TST dará em sede de IRDR. É algo que tem se tornado cada vez mais claro aos profissionais do campo jurídico, que lidam cotidianamente com as normas: nunca é só Direito, havendo comunicação entre os diversos sistemas de sentido, como aponta a clássica teoria de Niklas Luhmann. Com a palavra, o TST.
Autor: Elton Duarte Batalha – Professor de Direito da Universidade Presbiteriana Mackenzie. Advogado. Doutor em Direito pela USP.